Pesquisas apontam que a mulher trabalha cerca de 7h30 a mais que os homens, acumulando as funções de mãe, profissional e dona de casa.
No Brasil, a dupla jornada é uma realidade na vida de muitas mulheres. Segundo pesquisa de 2009 realizada pelo IBGE, 90% das mulheres que possuem trabalhos formais também são as responsáveis pela manutenção de seus lares.
A PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) de 2019 divulgou que as mulheres trabalham de 7 a 8 horas a mais do que indivíduos do gênero masculino.
É de conhecimento comum e está enraizado no sistema patriarcal que o cuidado da casa e dos filhos é função da mulher, quase que exclusivamente. Esse pensamento não mudou depois que a dona de casa passou a trabalhar formalmente. Na realidade, as funções, responsabilidades e cobranças aumentaram.
Muitas foram as lutas para que o gênero feminino ganhasse maior autonomia e direitos antes exclusivos dos homens. Diversos movimentos, como o das sufragistas, buscaram pela liberdade feminina e conquistaram, aos poucos, mais espaço. Hoje, uma mulher pode trabalhar, estudar, construir uma carreira e muito mais.
No entanto, apesar dessa maior “igualdade” em relação aos homens, pouco mudou dentro de casa: a mulher ainda é majoritariamente responsável pelos afazeres domésticos, mesmo trabalhando fora, como seu parceiro. Ela ainda deve cuidar dos filhos e do seu lar, e poucos são os relatos de lares em que as tarefas domésticas são divididas por igual entre os parceiros.
E há também a mãe solo, que lida com as finanças, os afazeres da casa e o cuidado com os filhos sozinha.
A sociedade passou a esperar cada vez mais da mulher — cobrando que ela seja a melhor mãe, melhor esposa, melhor profissional — e, muitas vezes, julgando quando ela não alcança esse ideal perfeito. Muitas são as mães que acabam divididas entre o sustento de seu lar e o cuidado com seus filhos.
Erica Sampaio, técnica de enfermagem e mãe de Alice, de 5 anos, comenta um pouco sobre a questão: “Vivemos em um mundo de desigualdade social entre trabalho [homem/mulher], estamos sempre tentando mostrar do que somos capazes, somos genitoras de grandes gênios. As empresas deveriam rever o conceito sobre uma pessoa que é mãe, oferecer uma jornada de trabalho que não fosse tão exaustiva. Temos muito medo de falhar, talvez seja por isso que nos cobramos tanto, tentamos dar conta de tudo mesmo com o cansaço no limite”.
Erica explica, também, que ser mãe é um trabalho constante: “Deveríamos ter mais períodos de descanso. Eu tento relaxar realizando algo que toda família gosta, mas uma mãe nunca tem um tempo só para ela. Mesmo que consiga ficar sozinha, nossa mente está lá com nossos filhos, com os nossos objetivos, talvez seja um conjunto de várias coisas que nos faça ter força para acordar e vencer nossos medos diários”, finaliza.
O sentimento de culpa também é comum entre as mães que precisam deixar seus filhos em escolas ou aos cuidados de babás e parentes para trabalhar, como relata Josiane Miranda, de 35 anos, bancária e mãe de duas crianças: Alice, de 4 anos, e Benício, de 8 meses: “Ultimamente não tenho conseguido lidar com a sobrecarga, principalmente após o nascimento do segundo filho. Tenho me sentido esgotada e parece que não consigo dar conta de tudo que preciso e gostaria de fazer. Às vezes sinto culpa, sim! Principalmente quando as crianças ficam doentes e eu não posso ficar com eles”.
Os desafios vão muito além do cuidado com a casa e o trabalho formal. Com a rotina apertada, resta pouco tempo para que as mulheres cuidem de si mesmas, de sua autoestima, saúde física e mental.
A psicóloga Tatiana Ferreira explica como esse excesso de trabalho pode afetar suas vidas: “De fato a gente vê um adoecimento devastador dessas mulheres no sentido de depressão, transtorno de ansiedade, transtorno do pânico. Essas mulheres têm uma baixa autoestima e não conseguem se cuidar, nem dos cuidados mínimos, inclusive, e isso se dá pelo fato de que não dão conta de tudo. Eu acho que a parte mais importante de pensar em saúde mental é o que ocasionou isso. E, nesse caso, é quando a pessoa se sente culpada por uma coisa que não tem culpa, a falta de tempo delas. É debilitante mesmo”.
Tatiana esclarece, ainda, que essa sobrecarga sobre a mulher afeta até seus relacionamentos, já que, perante a falta de tempo para pensar em si mesma e construir uma autoestima sólida, ela acaba presa em um ciclo vicioso que muitas vezes termina em um relacionamento abusivo. É comum, inclusive, que elas nem sequer reconheçam que estão em tal situação, aceitando que é seu papel histórico dar conta de tudo.
Esse tipo de sobrecarga criou uma fantasia de “Mulher-Maravilha”, a super-heroína que deve estar apta a lidar com tudo. Essa necessidade de ser perfeita em todas as áreas da vida deixa a mulher com um sentimento cada vez maior de culpa, como ressalta Natália Delfino, bancária e mãe de Lívia, de 6 anos: “Não consegui ainda me organizar para dedicar um tempo somente a mim, gostaria de praticar atividade física, sair com as amigas, fazer uma viagem sozinha, mas sem carregar a culpa de estar sendo egoísta. Sinto-me culpada por dedicar tanto tempo, energia e disposição ao serviço e não dedicar o suficiente à minha filha, não ter um tempo de qualidade com ela. Ainda não sei lidar com essa situação. De fato tento minimizar nas terapias, mas ainda não evoluí”.
Natália desabafa: “Eu acredito que afeta muito a minha autoestima, uma vez que tudo que se diz respeito a mim sempre é deixado por último, a preferência é sempre da família e do trabalho. Psicologicamente também abala, porque, de uma forma ou de outra, sempre sentimos que estamos em falta em ambos, por tentar buscar a perfeição constantemente”.
A psicóloga Tatiana Ferreira fala mais sobre a influência dessa realidade sobre a saúde mental da mulher:
Para a bancária Tatiana de Almeida, de 36 anos, mãe de Matheus, de 1 ano, é possível mudar essa realidade: “Para mudar, a sociedade precisa saber que o trabalho doméstico não está relacionado com a mulher, que somente nós temos obrigação dos cuidados com casa, filhos…"
“Amo a família que temos, e não trocaria isso por nada, mesmo com todo o cansaço”, enfatiza Josiane Miranda.
Como ela, mesmo com os desafios da dupla jornada e maternidade, todas as mulheres entrevistadas afirmam que não trocariam suas famílias por outra realidade, apenas gostariam de ter mais tempo para si mesmas e menos culpa.
“Sinto culpa a todo momento por deixar meu filho. O que eu realmente queria era estar todo tempo com ele, tenho certeza que muita coisa seria diferente, porém o que me conforta é que trabalho pra dar o melhor pra ele. O sentimento de culpa, o sentimento que você não está sendo a melhor mãe, a melhor esposa, a melhor dona de casa. A gente fica se culpando por tudo, querendo carregar todos nas costas. Não sei porque sinto essa necessidade de carregar tudo e todos. Quando esse sentimento vem, eu desabo…”, reforça Aline Aguiar, de 36 anos, mãe de Miguel, de 3.
Em contrapartida, é comum que os homens tenham mais autonomia e independência, e que sejam significativamente menos cobrados em relação à criação e cuidados com os filhos se comparados às mulheres. Isso, como é de se esperar, tem grande impacto sobre o sentimento de culpa: de acordo com o dicionário, esse sentimento tem um significado simples. É assumir a responsabilidade por um dano, seja ele de qualquer natureza, momentâneo ou permanente.
E a relação é óbvia: quanto menor a responsabilidade, menor a culpa pelo erro — ou pela ideia deste.
Em 2019, uma pesquisa realizada pela seção de Gestão e Cultura Organizacional da plataforma Think with Google mostrou que, enquanto para os homens brasileiros o maior medo é morrer (21%), as mulheres temem mais perder filhos, pais e familiares (20%). As mulheres têm medo do fracasso, mas o temor de não conseguir sustentar os filhos é muito maior – o dobro em relação aos homens. Elas acabam por temer mais por aqueles a quem amam do que por elas próprias, o que revela as marcas de um comportamento regido pela história: "a divisão convencional das funções nas famílias levou o homem a trabalhar fora de casa, e a mulher, a criar os filhos e administrar a casa. Infelizmente, o aumento da participação feminina no mercado de trabalho não trouxe a diminuição proporcional nas atividades domésticas", destaca o texto da pesquisa.
Historicamente, a mulher foi obrigada a tornar-se multitarefa por um fator simples: a sobrevivência. No entanto, com o passar do tempo, tal prática passou a denotar, cada vez mais, o excesso de responsabilidades.
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