Filme premiado coloca protagonista trans longe do vitismo e próxima do sonho. 'Paloma' não é mulher de desistir.
Inspirado em uma história real, ‘Paloma’, de 2022, é um filme contado em tons, em camadas.
A primeira se revela ainda nos primeiríssimos minutos do longa, com a identificação da personagem-título. Apaixonada, carnal, Paloma é uma mulher transgênero — o que não é surpresa alguma, já que a própria sinopse adianta a informação —, e não é preciso muito para saber — ou ao menos imaginar — que sua jornada ao longo dos próximos cento e poucos minutos não será fácil.
Paloma sonha com o casamento, com tudo que ele garante: véu e grinalda, muitos convidados… o sonho tem direito até a uma fada madrinha, que abençoa a união dos noivos, mas vai além: seu ponto alto deve ser uma cerimônia religiosa. Paloma quer que Deus abençoe seu amor.
Pela lei natural de Deus, nós somos homens e mulheres, nos complementamos, e geramos nossos descendentes. A Igreja decretou essa lei há mais de mil anos. Muita coisa mudou, o mundo mudou muito, mas a Igreja… a Igreja não mudou. Seu pedido é sincero, mas eu infelizmente não posso mudar a lei.
— Padre João, para Paloma.
Com a ajuda de sua amiga Kelly, Paloma decide escrever uma carta para a única pessoa que pode mudar a "lei natural" que a impede de se casar no altar de uma igreja: o Papa. Na mensagem, a protagonista, com os olhos brilhando, reafirma: "Nasci homi, mas sou mulher".
Na pequena cidade de Saloá, no Pernambuco, Paloma trabalha como agricultora, colhendo mangas, e, nas horas vagas, cabeleireira. Tem amigas no trabalho e na cidade, vai a casamentos e passeia com seu companheiro, Zé, e Jenifer, sua filha.
A sonhadora protagonista enfrenta a mesma dura realidade de muitas mulheres e homens transgênero no Brasil, que começa com os olhares tortos e comentários preconceituosos. Em certa ocasião, uma mãe não permite que sua filha brinque com Jenifer por ser filha "dessa gente esquisita".
Em meio a tantas referências — imagéticas ou subjetivas — do catolicismo — há até a presença de Paloma em uma romaria — a produção acerta em não "santificar" a protagonista. Trabalhadora, dedicada, sonhadora, mas que, como todo ser humano, também erra. Assim é Paloma.
Para quem, ao longo de pouco menos de duas horas de filme, é agricultora, cabeleireira, noiva, anjo e sereia nos quadros do filme, talvez a melhor imagem de Paloma seja a mais simples: esperançosa e feliz.
Enquanto planeja tudo para a realização de seu sonho, Paloma vivencia algumas cenas que podem, não à toa, serem reconhecidas por quem assiste: os desgastes no relacionamento, o cansaço do trabalho, as abdicações cotidianas… Ela ainda é verossímil com boa parte das mulheres quando, querendo um vestido diz "Zé vai me matar quando souber de preço", ao que sua amiga rebate: "E o dinheiro não é teu?", uma vez que, de fato, é.
É impossível falar de realidade sem citar os duros momentos em que o filme retrata uma difícil de engolir: há 14 anos, o Brasil é o país que mais mata trans no mundo. De acordo com o Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras, da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), mulheres trans e travestis têm até 38 vezes mais chance de serem assassinadas em relação aos homens trans e às pessoas não-binárias. Em 2022, a pessoa mais jovem assassinada entre as 131 apontadas no índice tinha apenas 15 anos. Quase 90% das vítimas não passava dos 40.
Por 'Paloma', a atriz Kika Sena, que dá vida à protagonista, fez história no Festival do Rio ao ser a primeira artista trans a conquistar o prêmio de Melhor Atriz. O longa também venceu o Troféu Redentor de Melhor Longa de Ficção e o Prêmio Felix de Melhor Filme Brasileiro.
'Paloma' está disponível na plataforma de streaming Globoplay.
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