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Foto do escritorHellica Miranda

Dia Nacional do Livro: 3 obras que colocam a mulher em papéis profundos

Do Romantismo à contemporaneidade, a mulher ocupa, na literatura, funções que vão muito além de meros personagens. No Dia Nacional do Livro, 3 obras atemporais.



Os dois mundos em 'Iracema'


Créditos de imagem: Editora Melhoramentos

Obra publicada em 1865 pelo cearense José de Alencar, considerado o fundador do "romance com temática nacional", 'Iracema' é, coincidentemente ou não, um anagrama de "América".


Parte do Romantismo Brasileiro, 'Iracema' é, ao lado de 'O Guarani' e 'Ubirajara' — ambos de José de Alencar —, um forte representante do período indianista, caracterizado pela exaltação do indígena — que é posto como um tipo "abrasileirado" dos heróis europeus — e a presença abundante da natureza tropical.


Escrito em terceira pessoa, o livro conta, cronologicamente, a história da indígena Iracema e do homem branco Martim, que se conhecem quando, assustada com a presença repentina do guerreiro, Iracema lhe atinge com uma flecha no ombro.


Depois de socorrer o homem, em quem Iracema não vê perigo, os dois se aproximam e, com a ajuda do guerreiro Poti, decidem fugir das consequências das regras que quebraram e viver sua história de amor em meio à guerra que os assola — que coincide com a colonização do Ceará.


Créditos de imagem: arte de José Maria de Medeiros

O homem branco e a mulher indígena dão à luz a primeira criança miscigenada da região, Moacir.


Mas o amor e a família em formação não são o suficiente e nem permitem que Martim permaneça na cabana onde se refugiam e, acompanhado de Poti, ele volta à guerra, de onde passa a sentir saudades de sua antiga vida.


Quando Martim finalmente retorna, Iracema padece. Já incapaz de amamentar o filho graças à tristeza e saudade do marido, a índia, filha de um pajé e detentora de um grande segredo da tribo, falece em decorrência da solidão e de seu coração partido.


A obra discute, por meio do abandono de Iracema à sua tribo e família, a submissão dos povos indígenas frente ao colonizador àquela época. Martim, por outro lado, representa o encantamento do europeu com o novo, o intocado — representado pela jovem virgem prometida a uma divindade — e que logo retorna a seu conhecido e seguro lar, mas carregando consigo um pedaço do novo mundo: o pequeno Moacir.


O existencialismo em 'Perto do Coração Selvagem'


Créditos de imagem: Editora Rocco

"Um romance que faltava". Foi assim que o crítico literário Antonio Candido se referiu ao romance de estreia da jovem Clarice Lispector, publicado em 1943.


Já na época, outros críticos reconheceram na autora brasileira nascida na Ucrânia a força e a singularidade do processo criativo e o quanto sua técnica e suas temáticas se distanciavam de tudo o que se era escrito usualmente.


Marcado pela introspecção que se tornaria característica das obras de Lispector, 'Perto do Coração Selvagem' conta a história de Joana em dois planos: sua infância e o início de sua vida adulta. Fugindo do caráter regionalista da época, o livro toma caminhos diferentes ao abordar o existencialismo, sobretudo através do fluxo de consciência — outra forte característica da escrita de Clarice Lispector, uma técnica que consiste no trabalho do narrador em exprimir diretamente os pensamentos que o personagem narrado tem e o que está sentindo no momento em que eles estão acontecendo.


Joana, seguindo o fluxo de sua memória, transita ora pelo passado, ora pelo presente, contrapondo suas experiências de menina às de "moça". Órfã de mãe e, logo, também de pai, a menina contemplativa, sonhadora e inocente à medida da infância, se depara com a realidade de um mundo que não a aceita muito bem como é: na casa dos tios, é tratada sob fingimentos. No colégio interno para onde vai em seguida, percebe sua inadaptabilidade. Joana "não é como todo mundo".


Conforme cresce, apaixona-se por um professor, e nutre por sua esposa grande inveja e raiva, mostrando, então, certa "vocação para o mal", expressa, sobretudo, através de seu comportamento irônico e venenoso.


No futuro, casa-se com Otávio, um homem que mantém um relacionamento extraconjugal com sua ex-noiva — fato que não é desconhecido para Joana.


A personagem Joana é muito confusa sobre sua própria identidade e existência, o que é comum e, portanto, causa proximidade com o leitor. Ela não sabe bem quem é, oscila entre a raiva, a ansiedade, a tristeza e a solidão, perpassando a maldade.


Joana parece intransponível, superior, uma espécie de Malévola completamente humana, simplesmente dona de uma atmosfera que a torna inatingível. É, no entanto, a configuração das camadas de proteção da menina-mulher que não aguenta mais sofrer.


Há, na protagonista, um forte sentimento de abandono — nem sempre tão claro. A morte do pai, que a criou até certo ponto da infância, o abandono por parte do marido e, futuramente, do amante que mal conheceu — a história que quase foi.


Clarice Lispector nunca exatamente se posicionou feminista. Também não há, no livro dos anos 1940, qualquer menção à palavra, mas é impossível não relacionar Joana à ideia: mulher branca, de classe média, tinha "ao alcance das mãos" o que formatava o papel da mulher perfeita: um "bom" casamento, a idade perfeita para procriar, estabilidade financeira promovida pelo marido... mas não era feliz. Sua descoberta como mulher é complicada e dolorosa, e ela não entende diversos requisitos sobre seu comportamento.


Joana é intensa e complexa. Está sempre mudando, construindo-se e descontruindo-se, em busca constante pela liberdade. O final de Joana não é um destino, mas a estrada para o autoconhecimento.


A juventude contra as ditaduras em 'As Meninas'


Créditos de imagem: Companhia das Letras

A literatura de Lygia Fagundes Telles é pautada pelo realismo intimista — o foco reside na exploração dos aspectos humanos e, sobretudo, no tempo psicológico dos personagens envolvidos na trama — e, 'As Meninas' é uma obra de polifonia textual: o livro é protagonizado por Lorena, Lia e Ana Clara, de quem conhecemos os sentimentos, pensamentos e conflitos.


Lorena estuda Direito; Lia é estudante de Ciências Sociais e militante de esquerda; Ana Clara estuda Psicologia e sofre pelo passado marcado por abusos sexuais e pelo presente dominado pelo uso de drogas.


Em 1969, ano em que os acontecimentos se passam, as três amigas vivem em uma pensão, ao redor da qual ronda o espectro da ditadura militar brasileira. A narração do romance se alterna entre as vozes de cada uma das protagonistas, que vão descrevendo de forma intimista os obstáculos de suas existências. Apesar de muito diferentes, quando se comunicam, as vozes de Lorena, Lia e Ana Clara trazem ao leitor grande sensação de realidade.


Utilizando-se da linguagem coloquial e dos diálogos intensos, a obra foge da monotonia — um dos motivos pelos quais segue um sucesso para a crítica.


As protagonistas, também, ao contrário do que se espera ainda hoje nas "mocinhas" das obras, fogem do papel clássico de heroínas. A jovem herdeira e Lorena, por exemplo, não tem motivo algum para se preocupar com as questões políticas e sociais da época. Embora romântica e virgem, relaciona-se com um homem casado e pai de cinco filhos, sonhando com sua atenção amorosa. Lia, por outro lado, participa de um grupo de militantes armados de esquerda. Seu namorado é preso pelo regime militar, para sua aflição. A linda Ana Clara é noiva de um homem rico, mas amante de um traficante, que a envolve mais e mais no mundo das drogas.


Além de críticas veladas ao sistema político autoritário e violento dos militares, a obra de Lygia aborda diversos temas que eram, à época, encarados como tabus e que, hoje, são pautas sociais importantíssimas, como a visibilidade LGBTQIA+ (em certo ponto, Lia relata a um amigo que namorara uma garota antes da faculdade e que terminara o relacionamento por culpa dos pais de ambas, que não aceitaram o relacionamento) e também a liberdade sexual feminina, reprimida pela sociedade no geral, principalmente por doutrinas religiosas, como quando Lia discute com uma das irmãs do pensionato sobre a virgindade de Lorena.


'As Meninas' virou filme em 1995, e está disponível no streaming da Amazon Prime Video.


Créditos de imagem: Banco Real (coprodutor)

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