Obra de Maria Firmina dos Reis foi publicada em 1859 sob o pseudônimo "Uma Maranhense" e é especialmente celebrado hoje.
Sinopse: Durante uma exaustiva viagem pelo cerrado brasileiro, um jovem cavaleiro se acidenta. É encontrado por um negro escravizado que generosamente o resgata e o leva sobre os ombros até a propriedade mais próxima. Além deste laço improvável, outra ligação se forma: entre o cavaleiro convalescente e a bela Úrsula, moradora da casa a que ele foi levado para repousar. A obra ganha potência e singularidade com os personagens negros e escravizados, como Túlio e Susana, que pela primeira vez na literatura foram retratados como indivíduos de valor e interesse para a narrativa, com um passado rico e subjetividades próprias. Mais que coadjuvantes, esses personagens usam sua voz para ativamente denunciar os horrores do regime escravocrata a que estão submetidos.
A obra
A obra de Maria Firmina dos Reis é considerada um romance precursor da temática abolicionista na literatura brasileira, pois é anterior à poesia de Castro Alves e ao "As vítimas-algozes" de Joaquim Manoel de Macedo, de 1869.
Ainda que grande parte dos historiadores não admitam, "Úrsula" é considerado o primeiro romance abolicionista da literatura brasileira, além de o primeiro romance da literatura afro-brasileira, uma vez que sua autoria é afro-descendente e, no cerne da história, há a temática do homem negro escravizado, sob um ponto de vista interno, trazendo, ainda, diversos traços ancestrais e tradicionais africanos.
Assim é que o triste escravo arrasta a vida de desgostos e de martírios, sem esperança e sem gozos. Oh! Esperança! Só a têm os desgraçados no refúgio que a todos oferece a sepultura!... Gozos!... Só na eternidade os antevêem eles. Coitado do escravo! Nem o direito de arrancar do imo peito um queixume de amargurada dor! Senhor Deus! Quando calará no peito do homem a tua sublime máxima — ama a teu próximo como a ti mesmo —, e deixará de oprimir com tão repreensível injustiça ao seu semelhante!... Àquele que também era livre no seu país... Aquele que é seu irmão?”
— Sobre Túlio, personagem de "Úrsula".
Em 1859, ano da primeira publicação de "Úrsula", a prosa de ficção iniciava seu caminho na literatura brasileira. O romance romântico de Maria Firmina dos Reis, com seu toque quase inaugural, ainda apresenta o aspecto da atitude política, a denúncia social. No livro, destacam-se o racismo e o machismo.
Para diversos estudiosos, o que tanto separa "Úrsula" dos demais romances publicados no século XIX é justamente a solidariedade e o olhar sobre o oprimido.
Com algumas ferramentas de sua narrativa, Maria, em alguns momentos, busca mostrar que o ser humano erra e acerta, sofre e alegra-se da mesma maneira, independente de sua cor. Como, na época, personagens negros muitas vezes nem sequer eram tratados como humanos, a autora segue justamente o oposto, como faz com o personagem Antero, que é mostrado como um homem escravizado que cuida dos prisioneiros na senzala.
Outra personagem, Mãe Susana, também escravizada, é, segundo estudiosos, como uma voz da própria autora, demonstrando seus pensamentos antiescravidão e seu desejo por fraternidade. A personagem também flui como uma representante de inúmeros personagens reais ao contar sua história desde os tempos de liberdade, muito antes, na África, até sua captura, que se presume ter ocorrido próximo aos portos de Cabo Verde — pela conexão marítima com o Maranhão.
Quando me arrancaram daqueles lugares, onde tudo me ficava – pátria, esposo, mãe e filha, e liberdade! Meu Deus! O que se passou no fundo da minha alma, só vós o pudestes avaliar! Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos às praias brasileiras.
— A personagem Mãe Susana.
O impacto dos personagens escravizados, como o herói Túlio, Antero e Mãe Susana, no entanto, acaba por ficar como uma espécie de pano de fundo, o que evidencia mais uma das artimanhas da escrita de Maria Firmina dos Reis para construir a realidade no papel sem atacar diretamente os costumes da sociedade que criticava. Isso porque, de fato, na época, era assim que homens e mulheres escravizados viviam: no pano de fundo dos brancos, das famílias que lhes eram "donas".
Com vocabulário complexo — mais ligado à época e à robusta capacidade literária que qualquer outra coisa —, "Úrsula" segue uma narrativa linear clara, com personagens que se monstram transparentes, sem muitas camadas, com suas personalidades e psiques nuas ao leitor. Tal fato também não é coincidência, mas estratégia da construção para tornar o romance de mais fácil aceitação popular, ainda que seu trabalho também estivesse centrado na dignificação do indivíduo escravizado e à crítica a esse fator.
Quanto à história de amor, esta ocorre entre a personagem que dá título ao livro e o jovem Tancredo, impedidos pela figura do tio Comendador, que almeja se casar com a jovem, mesmo contra sua vontade. Esta parte, apesar de tudo, lança mão de técnicas folhetinescas para unir e separar o casal e parece, de fato, apenas uma máscara sobre a mensagem que a autora quer mesmo passar — e que ela o faz, revolucionando e assim se mantendo por muito tempo como um destaque no tratamento do personagem escravizado, que, em sua obra, é um indivíduo, reconhece sua cultura, seu passado, seus dramas e as injustiças que o cercam, e não é, como o retratado por muitos outros autores, um ser ingênuo, quase desprovido de pensar e meros personagens passivos.
"Úrsula" teve uma boa aceitação por parte do público à época de sua publicação, mas acabou caindo no esquecimento, sendo "redescoberto" apenas muito depois.
Hoje, com suas diversas edições disponíveis no mercado, o romance monstra densas camadas para compreensão da Literatura e da História do país, fato que não se pode separar da identidade da autora, que é percebida tão contemporânea a partir de sua escrita pautada por uma ética humanista e antirracista. Mantendo-se disruptiva na forma de retratar o negro e a temática da escravidão, Maria Firmina dos Reis alcançou a atemporalidade, deixando, como legado — e não apenas por "Úrsula" —, uma reflexão cabível a quaisquer tempos vindouros.
A autora
"Em sua literatura, os escravos são nobres e generosos. Estão em pé de igualdade com os brancos e, quando a autora dá voz a eles, deixa que eles mesmos contem suas tragédias. O que já é um salto imenso em relação a outros textos abolicionistas", observa a professora Régia Agostinho da Silva, da Universidade Federal do Maranhão e autora do artigo "A mente, essa ninguém pode escravizar: Maria Firmina dos Reis e a escrita feita por mulheres no Maranhão".
Maria Firmina, além de publicar o primeiro romance escrito por uma autora no Brasil, foi a primeira mulher a ser aprovada em um concurso público no Maranhão para o cargo de professora de primário. Com o próprio salário, sustentava-se sozinha, mesmo em uma época em que isso era incomum e até mal visto para mulheres. Oito anos antes da Lei Áurea, criou a primeira escola mista para meninos e meninas, que durou pouco, justamente pelo escândalo que causou na cidade onde foi aberta.
O contato da autora, filha de mãe branca e pai negro, com a literatura começou cedo, em 1830, quando mudou-se para a casa de uma tia um pouco mais abastada. Aos poucos, teve contato com referências culturais e com outros de seus parentes ligados ao meio cultural, como Sotero dos Reis, um popular gramático da época. Foi daí, e do autodidatismo, que veio o gosto pelas letras.
Ao se tornar professora, doze anos antes da publicação de "Úrsula" — a qual só foi possível graças ao respeito e estabilidade conquistados pela profissão —, Firmina já tinha uma postura antiescravista bem desenvolvida. Ao ser aprovada no concurso para professora, recusou-se a desfilar pela cidade de São Luís nas costas de escravos.
Com "Úrsula", seu primeiro romance, a autora já tinha forte seu posicionamento: o livro foi o primeiro, no Brasil, a se posicionar contra a escravidão e usar-se do ponto de vista dos escravizados.
Anos depois de "Úrsula", publicou o prestigiado conto "A Escrava", além de outras obras, como "Cantos à beira-mar" e "Hino da libertação dos escravos".
Contudo, no geral, pouco se sabe sobre a vida de Maria Firmina dos Reis. Sua própria biografia, escrita por José Nascimento Morais Filho em 1975, tem como título "Maria Firmina: fragmentos de uma vida".
A autora faleceu pobre e cega, cuidada por uma ex-escrava, aos 95 anos. À época, esquecida por sua vida e obra, que hoje são lembradas e honradas.
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