No documentário 'Rainhas Africanas', a Netflix resgata a história da rainha Nzinga, primeira governante africana reconhecida pelo Papa.
Nzinga ou Jinga, como também era conhecida, nasceu em 1582, época em que os portugueses exploraram o continente africano, principalmente a região que hoje conhecemos como Angola, para buscar mão de obra escrava. Nzinga era filha do rei Ngola Mbande Kiluanji, governante do Ndongo e, por ter dois irmãos, não era seu destino assumir o trono. No entanto, a futura rainha era extremamente popular entre os súditos e conhecida por ser uma exímia guerreira.
O documentário é dirigido por Jada Pinkett Smith e tem como atriz principal Adesuwa Oni e faz parte de uma série sobre as rainhas africanas. Nessa temporada acompanhamos, a vida da rainha de Ndongo.
Costumes e primeiros feitos
Nzinga era a filha mulher mais velha do rei, muito apegada às suas irmãs Kifunji e Mucambu. A então princesa possuía muitas regalias, por ser "a favorita" de seu pai. Ocupava uma importante posição no conselho, teve permissão para ser treinada na arte da guerra e tinha à sua disposição uma espécie de harém feito apenas para ela. Nzinga teve apenas um filho, com seu concubino favorito e, na produção da Netflix, podemos ver como ela era apegada ao menino.
Seu pai, Ngola, estava em um grande conflito: Portugal adentrava cada vez mais suas terras, intensificando a captura de pessoas para torná-las escravas no Brasil. O sistema político era dividido entre o Rei (autoridade maior) e os sobas (governantes de cada província), nobres que pagavam um imposto para que o reino protegesse suas terras. Os sobas não queriam um confronto direto com Portugal, preferiam que seu rei continuasse batalhando com o reino vizinho, opinião que o filho mais velho — e futuro rei — Ngola Mbande, ou Ambande, como também era conhecido, compartilhava. Nzinga já acreditava que o inimigo principal eram os portugueses e discordava que seu pai fosse para a batalha diretamente.
A princesa estava certa. Seu pai foi morto por um dos seus guardas a caminho da guerra, deixando o reino sem rei. Mbande assumiu o governo e, com medo da crescente popularidade da irmã, mandou assassinar o sobrinho, ainda bebê, para evitar futuros golpes de estado. Nzinga nunca perdoou o irmão pela morte do seu filho.
Com grande pesar e contrariando a ordem de seu irmão e rei, Jinga passou três anos fora do reino, batalhando com um grupo de mercenários africanos pagos contra os portugueses, bloqueando rotas do comércio negreiro, impedindo que Portugal tivesse sucesso em sequestrar as pessoas da sua região.
Sua popularidade cresceu entre o povo. Já as decisões ruins de seu irmão fizeram com que seu poder se tornasse instável e perigosamente fraco. Em uma sucessão de táticas ruins, contrariando os conselhos de sua irmã, Mbande perdeu a capital de seu reino e precisou se refugiar com sua família em uma cidade menor e mais afastada. Ele, então, chamou Nzinga e pediu para que ela negociasse a paz por ele.
Estratégia militar e política
Nzinga vai até Luanda — porto português importante, por sua posição estratégica, em que vendiam as pessoas e as embarcavam para o Brasil — acompanhada de suas duas irmãs e um séquito de servos. Ricamente vestida com penas, tecidos e pedraria, a princesa foi esnobada pelo governador, que não a ofereceu uma cadeira, tentando diminuir seu poder. Saindo dessa situação com maestria, Nzinga faz um gesto com a mão e uma de suas acompanhantes serve de banco para ela.
Os portugueses fazem inúmeras exigências à futura rainha, entre elas que o reino de Ndongo passe a pagar tributos a Portugal, o que Nzinga nega, afirmando que reinos subordinados pagam impostos, não nações independentes e soberanas que estão oferecendo amizade.
Com maestria, Jinga foi se mostrando uma diplomada versada, hábil na negociação, mesmo sendo questionada constantemente por seu sexo e cor.
Entendendo que a exploração de Portugal da mão escrava era justificada pela Igreja, Nzinga resolve, então, que precisa ser cristã para ser reconhecida e ter o poder da palavra. Foi em seu batismo que recebeu o nome de Ana de Sousa, nome foi usado em suas cartas para o Papa um pouco mais tarde.
Graças a essa jogada, Nzinga conseguiu consolidar o tratado de paz de Portugal e Ndongo, recuperando o controle da capital de seu país e garantindo proteção contra os ataques de outras nações africanas. Durante vários meses, a paz se manteve. No entanto, outra nação atacou Ndongo e Portugal colocou como condição para ajuda-los que o rei se tornasse cristão e subordinado dos portugueses, e que o reino deixasse de cultuar seus ancestrais e deuses. O rei era o elo do povo com suas crenças e culturas, e Nzinga apelou para que o irmão não cedesse. Se sentindo humilhado pela quebra do tratado, Mbande recusou a proposta.
Alguns dias depois, o irmão de Nzinga foi morto por envenenamento, o que, até hoje, é uma questão muito discutida. Muitos afirmaram que se tratava de um golpe de estado orquestrado pela princesa guerreira. Outros, que foi retaliação de Portugal. De qualquer forma, Nzinga assumiu o governo como rainha regente, até que seu sobrinho tivesse idade para assumir.
Nzinga sabia que seu reinado estava ameaçado e, em um ato político — igual àquele feito com seu irmão — mandou assassinar seu sobrinho. É dito que foi vingança por seu filho ter sido morto pelo antigo rei. Consolidada como rainha, Nzinga começa a trabalhar para a expulsão dos portugueses de suas terras.
Holanda, anos finais de rainha e pedido ao Papa
Nzinga era mestre em bloquear as rotas mercantes de Portugal, resgatando todas as pessoas sequestradas, que ganhavam um lar e sua proteção em seu reino. O governo não estava satisfeito com isso, e mandou emissários diversas vezes até a rainha, que os repelia, informando que não havia nenhum escravo pertencente a Portugal em seu reino.
Durante anos, a estratégia funcionou, até que Portugal conseguiu destruir a capital de Nzinga e capturar suas duas irmãs, que governavam ao seu lado como principais conselheiras. Devastada, Nzinga se casou com um antigo inimigo, um poderoso líder que possuía um exército nômade que buscava se estabelecer. Nzinga ou Ana (seu nome após o batismo) ofereceu a ele sua astúcia na construção de um reino, em troca de seu exército. Com isso, invadiu o reino de Matamba, por sua posição estratégica e, durante os próximos anos, continuou tentando recuperar suas irmãs.
Portugal devolve sua irmã Mucambu, mas manteve Kifunji como refém, que passou a espionar para sua irmã e rainha. Uma reviravolta prometia ajudar no plano de Nzinga para expulsar os portugueses: a Holanda invadiu Luanda e Pernambuco, tomando o poder de Portugal para si.
Nzinga tenta uma aliança militar, com a ideia de invadir o forte mais poderoso dos portugueses. A rainha não era boba, sabia que os holandeses queriam o mesmo que Portugal: escravos. Mas ela também sabia que precisava expulsar primeiro os portugueses e recuperar sua irmã, para, depois, se preocupar com a Holanda. Então, buscou o reconhecimento da Holanda sobre sua soberania, assim como fez com Portugal. Novamente, por ser mulher, não foi levada a sério.
Quando Nzinga conseguiu reunir o exército necessário para a invasão, Portugal mandou um novo governador, mais temível e inteligente que o anterior, que chegou queimando cidades, sequestrando novamente Mucambu e matando afogada sua irmã Kifunji. Jinga, então, começou uma nova frente de ataques isolados, tentando recuperar sua única irmã, Mucambu, e herdeira legítima, já que nunca mais teve filhos.
Em uma de suas capturas, dois padres que estiveram em seu batismo tantos anos antes foram levados até ela. Durante sua conversa com seus novos prisioneiros, Nzinga percebeu que não adiantava tentar o reconhecimento de sua soberania pelas nações, que ela precisava de um reconhecimento da maior autoridade de todas aquelas pessoas católicas: o Papa.
Foi então que, assumindo novamente seu nome de Ana, ela passou a se comunicar direto com o Papa, pedindo que ele a reconhecesse como rainha cristã, o que lhe conferiria segurança e credibilidade, forçando que os países de fé católica respeitassem suas terras e os tratados firmados. O Papa mandou emissários, que afirmaram que apenas ser como católica não adiantava, seu reino todo precisava crer na nova fé.
Nzinga, então, se tornou a primeira monarca africana a inserir o catolicismo em massa em seu país, obrigando batismos todos os dias em grandes grupos de pessoas, construindo capelas e igrejas por todo seu território e impondo o catolicismo como religião oficial.
Essa nova abordagem fez com que quase todo o conjunto de cultura, crenças e costumes baseados nos ancestrais desaparecessem, o que custou muito para a rainha.
Seus esforços, no entanto, foram recompensados: sua irmã e herdeira foi devolvida para ela e Nzinga foi reconhecida como monarca cristã, o que fez com que as demais nações respeitassem seus status real e honrassem os tratados.
Nzinga lutou em uma época de caos e sofrimento, em que a escravidão estava no mundo todo, com pessoas construindo novos países a custa de suas vidas. Ela não pôde deter a escravidão que tanto a atormentava, nem pode expulsar os portugueses, apesar de ter tentado por toda sua vida. Mas protegeu o povo de Ndongo e Matamba, não permitindo que fossem sequestrados e escravizados.
O catolicismo imposto em seu país fez com que a igreja evitasse o sequestro dos novos cristãos, almas já salvas. Depois dela, uma longa linhagem de rainhas a sucedeu, começando por sua irmã.
O reino de Ndongo caiu para os portugueses muitos anos após a sua morte, assim como os demais, se tornando o que conhecemos hoje como Angola. Depois de muitos anos de luta, Angola deixou de ser colônia de Portugal, sendo reconhecida como nação independente em 11 de novembro de 1975.
A figura de Nzinga, uma mulher negra, rainha, guerreira, viva em uma época de trevas, em que a cor da sua pele era um atestado de morte, sobreviveu, reinou e lutou contra os maiores opressores do país. Mesmo que a narrativa europeia tenha tentado apagar seu legado e demonizar sua história, a rainha Nzinga é reconhecida até hoje como uma figura de luta e liberdade.
Contexto histórico
Em 1500, o Brasil é invadido por Pedro Álvares de Cabral, que tentava chegar às Índias —razão muito questionada, já que alguns historiadores narram que Portugal já sabia da existência do Brasil, chegando aqui para reclamar a terra primeiro, antes da Espanha ou Inglaterra — e logo se percebe que o novo mundo seria uma colônia de exploração perfeita, com sua terra fértil, ideal para plantio, sua vegetação rica, animais exóticos, coloração das árvores (a tintura avermelhada única do pau-brasil), a mineração de ouro e diamantes e muito mais.
Então, as capitanias começam a surgir e, com elas, os engenhos. Primeiro, se extraiu o pau-brasil — árvore que dá o nome ao país — graças à sua bonita e rica pigmentação, que poderia dar no tom de vermelho, rosa ou roxo e sua forte madeira, ideal para móveis luxuosos.
Depois se descobriu que era possível a exploração da cana-de-açúcar, produto caro que era exportado para toda a Europa. A Inglaterra começou a produzir também, então Portugal apostou em sua nova riqueza no novo mundo: ouro e diamantes. A exploração de ouro e diamantes durou por quase um século todo, vindo em seguida o ciclo do algodão, para ser substituído pelo café.
Todo esse processo precisava de mão de obra barata, para que os lucros continuassem altos para a Coroa portuguesa. Foi então que o sequestro de pessoas do continente africano se tornou algo comum e até apoiado pela Igreja Católica. Luanda foi construída por ser estrategicamente mais próxima do Brasil, tornando a travessia de navio mais rápida, garantindo que a maior parte dos escravizados chegassem vivos.
Durante o colonialismo, os indígenas brasileiros também foram usados como mão de obra escravizada. No entanto, por conhecerem melhor o território, fugiam e levavam o maior número de pessoas com eles. Passou a ser preferível seu extermínio, do que tê-los como escravos.
De 1630 a 1654, a Holanda invadiu o nordeste brasileiro, que ficou conhecido como Brasil Holandês. Na mesma época, os holandeses assumiram o controle de Luanda, no continente africano.
A questão das pessoas escravizadas é muito debatida, a escravidão que conhecemos foi de cunho racista, xenofóbico e intolerante. A Igreja Católica sem dúvidas lucrou muito com a perseguição do povo negro, tendo sua riqueza triplicada na época, e apoiava a escravidão, julgando que se tratava de um povo pagão, sem Deus ou civilidade, e que apenas com trabalho poderiam salvar suas almas condenadas.
Além disso, se tratava de um genocídio em massa, já que assim que capturada a pessoa escravizada viveria em condições precárias,com horas exaustivas de trabalho ao sol, pouco alimentação e baixo saneamento, fazendo com que sua expectativa de vida, a partir da captura, fosse em torno de 8 a 10 anos.
É diferente do sistema de escravidão que existiu durante os séculos anteriores. Em Ndongo, existiram escravos, feitos principalmente de guerras. A mãe de Nzinga era escrava de seu pai, que a tornou sua concubina favorita. A diferença é que a pessoa escravizada em Ndongo tinha direitos e poderia ganhar cargos de importância e relevância. Ela era vista como uma pessoa, recebia uma casa, comida e cuidados. O mesmo sistema existia em outros lugares do mundo.
O que torna a escravidão negra um ato obsceno é que eram tratados como objetos, sem quaisquer direitos ou humanidade, sendo tajados por muito tempo como seres sem alma. Passaram-se muitos séculos até que a Igreja reconhecesse a barbárie na escravidão e se tornasse contra a prática.
O documentário 'Rainhas Africanas' está disponível na Netflix.
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