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Foto do escritorHellica Miranda

Machismo estrutural e cultura do estupro

Filme Bela Vingança, que fez sucesso em 2020, toca em feridas causadas pelo patriarcado, como o machismo estrutural e a cultura do estupro.


Créditos de imagem: Universal Pictures

*Alerta de gatilho.


Este artigo contém spoilers do filme 'Bela Vingança'.



Bela Vingança: uma narrativa sobre como a sociedade naturalizou práticas de abuso


O filme estadunidense 'Bela Vingança' (Promising Young Woman, no original), lançado originalmente em 2020, foi recebido pela crítica com louvor: no Rotten Tomatoes, o índice de aprovação passa dos 90% e, no Metacritic, tem uma pontuação de 74 de 100.


A sinopse é simples, mas enigmática: “Todos diziam que Cassie era uma jovem promissora, até que um evento misterioso destruiu abruptamente seu futuro. No entanto, nada na vida de Cassie é o que parece ser: ela é perversamente inteligente e tentadoramente astuta, e vive uma vida dupla secreta à noite. Um encontro inesperado está prestes a dar a Cassie a chance de corrigir os erros do passado”.


A protagonista do filme, vivida pela atriz Carey Mulligan, é apática e monótona durante o dia, mas, durante a noite, atua como uma espécie de justiceira: toda semana ela vai a algum bar, finge estar bêbada o suficiente para mal conseguir se mover e espera que algum homem tente se aproveitar dela. Quando eles estão perto de conseguir o que querem, Cassie se recompõe e se dispõe a ensiná-los uma lição.


Créditos de imagem: Universal Pictures

O filme é dividido em partes, enumeradas na tela quando estão prestes a começar. E, nas primeiras, vemos como a “cultura hook-up” mistura-se sordidamente à cultura do estupro.


A cultura hook-up, em tradução livre “dos encontros casuais”, implica em um tipo de relação informal, muitas vezes através de um encontro único e que, geralmente, termina em sexo. O que se esconde nas entrelinhas, no entanto, é que é “comum” que uma das partes esteja demasiadamente bêbada, incapaz de responder por si mesma e ponderar, conscientemente, sobre suas ações.


Contudo, não é o supracitado o que causou o grande trauma de Cassie e que a tornou uma “justiceira da noite”. À época da faculdade, sua melhor amiga, Nina, foi estuprada em frente a vários de seus colegas universitários, não obtendo justiça posteriormente e, como é comum a várias vítimas, sendo constantemente envergonhada pelo crime cometido contra ela.



A Nina era extraordinária... tão inteligente. (...) Ela é tão difícil de descrever, porque era tão única. (...) Ela era simplesmente... Nina. E depois não era mais. De repente, era outra coisa. Era sua. Não era o nome dela que ouvia quando andava por aí, era o seu. O seu nome, em todos os lugares. Nela inteira, o tempo todo.


Embora não fique nítido no filme, é subentendido que Nina cometeu suicídio depois de tudo que aconteceu. E partes de Cassie, a protagonista, morreram junto a sua melhor amiga. Como a fé no outro, por exemplo.




Reconhecer a existência da cultura do estupro em meio a tantas outras marcas profundas do patriarcado não é, diga-se de passagem, fácil de lidar. Ela existe, e é inegável.


O termo em si é usado desde os anos 1970 – a segunda onda feminista – e se refere a todo tipo de comportamento que viabiliza, silencia e/ou relativiza o abuso sexual contra a mulher. Abuso esse que é, segundo dados do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), 50% das vezes cometido por conhecidos: parentes, namorados, amigos, colegas... e que pouco chega à polícia: estima-se que apenas 10% dos casos sejam denunciados.


O que é a cultura do estupro?


Créditos de imagem: Universal Pictures

"Você consegue adivinhar qual é o pior pesadelo de toda mulher?"



Para entender as origens e os significados da “cultura do estupro”, é necessário, de antemão, reconhecer o que há por trás da palavra “cultura” em si.


De acordo com as definições do Oxford Languages, primeira caixa de dicionário que se abre no Google, “cultura” quer dizer, além da “ação, processo ou efeito de cultivar a terra; lavra, cultivo”, um “conjunto de padrões de comportamento, crenças, conhecimentos, costumes etc. que distinguem um grupo social”, sob a ótica da antropologia.


No entanto, é importante perceber que muito do que conhecemos por “cultura” está diretamente relacionado às práticas artísticas, difusão de conhecimentos e crenças e, no mais geral, a estruturação da identidade de determinado povo ou grupo. O que, por si só, também demonstra a existência de fatores positivos e negativos, isso porque o que é estabelecido por determinada cultura nem sempre é benéfico à sociedade: a tal cultura do estupro é um exemplo disso, visto que representa uma prática que é, a diferentes níveis, aceita pela sociedade que sofre com seus efeitos nocivos.


Muito disso, dessa aceitação aparentemente injustificada, parte da noção de que certos hábitos e comportamentos são da natureza humana, ou seja, irreversíveis, e que combatê-la seria inútil.


É assim que são formadas as culturas que prejudicam o desenvolvimento justo da sociedade e, como alertado pelo sociólogo e antropólogo francês Denys Cuche na obra 'A Noção de Cultura nas Ciências Sociais', os comportamentos que naturalizamos, com o tempo, não são necessariamente, ou sequer realmente, naturais, mas condicionados pela cultura, que não é imutável e atemporal, mas relativa.


Nesse sentido, a definição de “cultura de estupro”, termo que, como já citado, passou a ser usado a partir da chamada “segunda onda feminista” como forma de descrever comportamentos que silenciam e diminuem práticas de abuso e violência sexual. E, ao cunhar tal expressão, o termo “cultura” explica hábitos não naturais, mas criados. E o que se busca, a partir deste ponto, é transformar aquilo que foi criado, mudar uma situação que se instalou.


E o “estupro”, em si, tem um conceito amplo pelas definições do Código Penal Brasileiro. Refere-se ao ato de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Sendo “ato libidinoso” qualquer ação que tem como objetivo a satisfação sexual, não estando, portanto, ligado somente ao ato sexual em si.



Faz parte dessa “cultura” a objetificação feminina, que submete a mulher ao estado de propriedade alheia, não dotada de direitos, personalidade ou escolha própria, e passível de ser interpretada por terceiros a partir de referências vagas como sua aparência física ou sua escolha de vestimentas: como um objeto, ela deve ser aquilo que parece ser, e estar disponível para manipulação de terceiros como bem desejarem.



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