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Foto do escritorHellica Miranda

Ms. Marvel e um pedacinho de história

Produção que apresenta primeira heroína protagonista muçulmana do Universo Marvel conta parte da história da Partição da Índia.





Deixando de lado os efeitos especiais


Ainda que, para os mais fervorosos fãs do Universo Marvel, a série que apresenta a heroína muçulmana seja uma produção ligeiramente desperdiçada e, para alguns, “ruim demais”, 'Ms. Marvel' é uma chance de, com a leveza de um seriado adolescente, introduzir assuntos como a importante jornada de autodescoberta, e ir ainda mais longe, viajando para o passado e mostrando, mesmo que brevemente, um dos episódios palco de maior êxodo populacional da história, a Partição, ocorrida em 1947.


À época, os territórios que hoje compreendem Índia, Paquistão, Bangladesh e Myanmar eram de domínio colonial do Império Britânico, o Raj (reino) Britânico, que durou de 1858 a 1947, quando o Reino Unido “concedeu” a soberania para a Índia e Paquistão, um processo de divisão marcado por horrores e brutalidade: foi responsável pela morte de mais de 1 milhão de pessoas, e deixou mais de 15 milhões desabrigadas.


A divisão entre Índia, de maioria hindu, e Paquistão, de maioria muçulmana, fez com que milhões de muçulmanos viajassem para oeste e leste do Paquistão, enquanto milhões de hindus fugiram na direção oposta. Nesse período de evasão, milhares de indivíduos não alcançaram seus destinos, e inúmeras famílias foram partidas.



Violência sectária


Por quase um milênio, diferentes comunidades de diferentes culturas coexistiram no território do subcontinente indiano, mas as tensões da Partição causaram conflitos sectários, ou seja, episódios marcados pela divergência de ideologias tratada de forma violenta. Neste caso, hindus e Sikhs contra muçulmanos, levando a um genocídio sem precedentes.


Em Punjab (considerado o coração da comunidade Sikh na Índia) e Bengala — províncias que fazem fronteira com a Índia e com o Paquistão Ocidental e Oriental, respectivamente — o massacre foi intenso, marcado por incêndios, conversões forçadas, sequestros em massa e violência sexual. Cerca de setenta e cinco mil mulheres foram estupradas, e muitas delas foram desfiguradas ou desmembradas.


Mulheres muçulmanas abordam um trem em Nova Delhi para viajar ao Paquistão em 7 de agosto de 1947

Em seu livro ‘Midnight's Furies: The Deadly Legacy of India's Partition’ (Fúrias da Meia-Noite: O Legado Mortal da Partição da Índia, em tradução livre), o autor indiano Nisid Hajari descreve o cenário:


Gangues de assassinos incendeiam aldeias inteiras, matando homens, crianças e idosos enquanto carregavam mulheres jovens para serem estupradas. Alguns soldados e jornalistas britânicos que testemunharam os campos de extermínio nazistas alegaram que as brutalidades da Partição eram piores: mulheres grávidas tiveram seus seios cortados e bebês arrancados de suas barrigas; crianças foram encontradas literalmente assadas em espetos.

A comparação com o Holocausto Nazista pode não ser, à primeira vista, tão óbvia, mas, a Partição é, para a identidade e consciência da população do subcontinente indiano, tão importante quanto os terrores dos campos de extermínio de judeus. A historiadora paquistanesa Ayesha Jalal define os eventos da Partição como "um momento decisivo que não é nem começo nem fim, a partição continua a influenciar como os povos e estados do sul da Ásia pós-colonial visualizam seu passado, presente e futuro”.


Em uma das cenas da série original da Disney+, Sana, a avó da protagonista Kamala, que tinha cerca de 5 anos nos eventos da Partição — entre 14 e 15 de agosto de 1947 — recorda o período e comenta suas consequências:


Mesmo na minha idade, ainda estou tentando entender quem eu sou. Meu passaporte é paquistanês, minhas raízes estão na Índia. E, no meio de tudo isso, há uma fronteira. Uma fronteira marcada com sangue e dor. Pessoas buscando uma identidade com base em uma ideia que um velho inglês teve enquanto fugia do país. Como alguém lida com isso?


Concessão forçada


Não foi por piedade que o Império Britânico concedeu a soberania aos dois países: depois dos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, a Grã-Bretanha já não tinha mais os recursos necessários para controlar todo seu patrimônio imperial, e a saída da Índia aconteceu às pressas, de forma confusa — o que, certamente, teve direta influência sobre os violentos conflitos —, mas sem grandes problemas para o império que se retirava.


A polarização entre hindus e muçulmanos ocorreu em algumas décadas do século XX, mas em pouquíssimo tempo, era tão severa que muitos de ambos os lados acreditavam que era impossível para os adeptos das duas religiões viverem juntos pacificamente. E o clima de hostilidade perdura até os dias de hoje, mais de 70 anos depois: entre outros fatores, Índia e Paquistão ainda disputam o território da região que compreende a Caxemira, localizada ao extremo noroeste do subcontinente indiano (sobre o que falaremos mais em breve).



Nação perdida


Ao contrário do que nos vem à mente perante a menção da palavra “nação”, o conceito não se refere a um país, mas à “reunião de pessoas, geralmente do mesmo grupo étnico, que falam o mesmo idioma e têm os mesmos costumes, formando assim, um povo”. No século XIX, a Índia ainda era um lugar onde tradições, línguas e culturas atravessavam os limites de grupos religiosos e os indivíduos não se definiam principalmente por meio de sua fé religiosa, e compartilhavam gostos e costumes.


A escritora Alex von Tunzelmann, em seu livro ‘Indian Summer: The Secret History of the End of an Empire’ (Verão Indiano: A História Secreta do Fim de um Império, em tradução livre), ressalta que “quando os britânicos começaram a definir comunidades com base na identidade religiosa e atribuí-las à representação política, muitos indianos deixaram de aceitar a diversidade de seus próprios pensamentos e começaram a se perguntar em qual das caixas eles pertenciam”, pensamento reforçado e compartilhado pela historiadora britânica Yasmin Khan, doutora pela Universidade de Oxford, em seu livro ‘The Great Partition: The Making of India and Pakistan’ (A Grande Partição: A Formação de Índia e Paquistão, em tradução livre):


(A Partição) é um testemunho das loucuras do império, que rompe a evolução da comunidade, distorce trajetórias históricas e força a formação violenta de estados de sociedades que de outra forma teriam tomado diferentes — e incognoscíveis — caminhos.

Hindus e muçulmanos começaram a se voltar uns contra os outros durante o caos desencadeado pela Segunda Guerra Mundial. No ano de 1942, quando os japoneses tomaram Cingapura e Rangoon e avançavam em direção à Índia, o Partido do Congresso iniciou uma campanha de desobediência civil, o Movimento “Quit India”, e seus líderes, incluindo Gandhi e Nehru, foram presos. Enquanto estavam na prisão, Jinnah, conhecido como “o maior responsável pela criação do Paquistão”, que, em teoria, era um aliado dos britânicos, consolidou sua opinião de proteger os interesses muçulmanos contra o domínio hindu. Quando a guerra acabou e os líderes do Partido do Congresso foram soltos, Nehru pensou que Jinnah representava “um exemplo óbvio da total falta de uma mente civilizada”, e Gandhi o chamava de “maníaco” e “gênio do mal”.


Desse momento em diante, as tensões entre hindus e muçulmanos começaram a ascender nas ruas. Muitos foram forçados a sair de bairros mistos e se refugiaram em guetos cada vez mais polarizados. As tensões foram muitas vezes aumentadas por líderes políticos locais e regionais, como o ministro-chefe da Liga Muçulmana de Bengala, H. S. Suhrawardy, que publicou em um jornal que “derramamento de sangue e desordem não são necessariamente maus em si mesmos, se forem utilizados por uma causa nobre”.



Mais de 7 décadas de conflitos


A primeira série de massacres religiosos generalizados ocorreu em Calcutá (capital do estado de Bengala Ocidental, na Índia), em 1946, em parte como resultado do incentivo de Suhrawardy. Alex von Tunzelmann conta a história de atrocidades testemunhadas pelo escritor Nirad C. Chaudhuri, que relata a cena de “um homem amarrado à caixa de conexão dos trilhos com um pequeno orifício perfurado em seu crânio, para que ele sangrasse até a morte o mais lentamente possível”.


À medida que os tumultos se espalhavam para outras cidades e aumentava o número de baixas, os líderes do Partido do Congresso, que eram, inicialmente, contrários à Partição, começaram a vê-la como a única saída contra Jinnah e a Liga Muçulmana. Em um discurso em abril de 1947, Nehru disse: “Quero que aqueles que são um obstáculo em nosso caminho sigam seu próprio caminho”. Da mesma forma, os britânicos perceberam que haviam perdido quaisquer vestígios de controle restantes e começaram a acelerar sua estratégia de saída.


Em março de 1947, o lorde Louis Mountbatten voou para Delhi como o último vice-rei da Grã-Bretanha, cuja missão era entregar o poder e sair da Índia o mais rápido possível. Uma série de encontros desastrosos com Jinnah logo o convenceu de que o líder da Liga Muçulmana era inflexível a negociações. Temendo, ironicamente, uma guerra civil, o Lorde Mountbatten convenceu todas as partes a concordar com a Partição como a única opção viável.


O líder nacionalista indiano Jawaharlal Nehru (esq.); o vice-rei da Índia, Louis Mountbatten (centro), e o presidente da Liga Muçulmana de Toda a Índia, Ali Jinnah (dir.)

Cinco meses depois, quando os últimos oficiais britânicos partiram para as estações de trem, encontraram ruas repletas de cadáveres, e os funcionários das estações limpando sangue dos trilhos: um grupo de hindus que fugiam da cidade havia sido massacrado por uma multidão muçulmana enquanto esperavam por um trem. Quando finalmente conseguiram deixar a região, os soldados viram, pelas janelas de seu trem, Punjab em chamas, vilarejo após vilarejo.


Cidade no estado de Punjab palco de conflitos entre muçulmanos, hindus e sikhs em março de 1947.

Nisid Hajari escreve: “Caravanas a pé de refugiados indigentes fugindo da violência se estendiam por 50 milhas ou mais. Enquanto os camponeses caminhavam com dificuldade, guerrilheiros montados irromperam das plantações altas que ladeavam a estrada e os abateram como ovelhas. Trens especiais de refugiados, lotados ao ponto de partir, sofreram repetidas emboscadas ao longo do caminho. Muitas vezes eles cruzavam a fronteira em silêncio fúnebre, sangue escorrendo por debaixo das portas de suas carruagens”.


Trens superlotados e pânico marcaram as migrações decorrentes da Partição. Cenas são recriadas em 'Ms. Marvel'.

Em poucos meses, a paisagem do sul da Ásia havia mudado irrevogavelmente. Em 1941, Karachi, designada a primeira capital do Paquistão, era 47,6% hindu. Delhi, a capital da Índia independente, era um terço muçulmana. No final da década, quase todos os hindus de Karachi haviam fugido, enquanto duzentos mil muçulmanos foram forçados a sair de Delhi. As mudanças feitas em questão de meses permanecem indeléveis setenta anos depois.


Desde 1947, a Índia e o Paquistão alimentam uma antipatia mútua: travaram duas guerras inconclusivas sobre a disputada região da Caxemira — única área de maioria muçulmana a permanecer na Índia. Em 1971, os dois países lutaram pela secessão do Paquistão Oriental, que se tornou Bangladesh. Em 1999, depois que as tropas paquistanesas cruzaram uma área da Caxemira chamada Kargil, os dois países chegaram assustadoramente perto de uma guerra nuclear. Apesar dos gestos periódicos em direção às negociações de paz e momentos de reaproximação, o conflito indo-paquistanês continua sendo a realidade geopolítica dominante na região. Na Caxemira, uma prolongada insurgência contra o domínio indiano deixou milhares de mortos e ainda dá origem a violência intermitente. Enquanto isso, no Paquistão, onde metade da população feminina permanece analfabeta, a defesa consome um quinto do orçamento, superando o dinheiro disponível para saúde, educação, infraestrutura e desenvolvimento.




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